POR QUE A FRANÇA?
Massacre em Paris: “terceira guerra mundial aos pedaços”
Desde logo nossa solidariedade a
todos os que, inocentemente, se converteram em “cadáveres antecipados”. O mais
triste é saber que eles não foram as últimas vítimas da insanidade humana.
Quem falou em guerra mundial “aos
pedaços” foi o Papa Francisco. Mas para o princípio da intelegibilidade do
humano, muito provavelmente deveríamos eliminar a parte final da frase. Não
fazemos guerras “aos pedaços”; de pedaços podemos falar em relação aos corpos
dilacerados, sobretudo de inocentes. Mas quando nos referimos a nós, os humanos
(muito superficialmente racionais[1]),
a regra histórica é clara: vivemos em guerra, ou seja, somos beligerantes por
natureza. Mirando nossa folha de antecedentes, não há como negar o princípio do
“realismo beligerante ou guerreiro”.
A guerra reciprocamente declarada
entre o Estado Islâmico e a França (incluindo os EUA e vários outros países)
não é algo excepcional na existência humana. Os seres humanos matam uns aos
outros desde que desceram das árvores. Não seria surpresa (diz Matthew White[2])
“encontrar corpos ocultos no alto das suas folhagens”. A arqueologia está cheia
de ossos humanos com fraturas provocadas por armas. Milhões e milhões e milhões
de seres humanos já foram trucidados por outros seres humanos (Steven Pinker).
Guerreamos pelas nossas vidas,
pelas nossas coisas, pela nossa cidade ou país, pelas nossas preferências
políticas, pelas nossas ideias, pela nossa família ou por amigos, por espaços
no trânsito, por territórios lícitos ou ilícitos, pelo nosso time… e, por que
não?, também por religiões. Não existe o sujeito “neutro” (Foucault[3]):
somos, então, necessariamente, adversários de alguém (de alguma ideia, de algum
“inimigo” pessoal ou coletivo, de alguma crença, de alguma ideologia).
A teoria filosófico-jurídica, sob
o amparo da “teoria da soberania” (desenvolvida no final da Idade Média),
difunde a ideia discutível (para não dizer mentirosa) de que é a partir do
poder soberano que a sociedade é estruturada de forma pacífica (de cima para
baixo, de maneira hierarquizada). Tudo isso é dito para esconder a verdadeira
realidade das “relações de poder e de dominação”, as quais, enfocadas de baixo
para cima (Foucault), são fundadas em guerras, desavenças, conflitos,
rebeldias, insurreições, discussões, litígios e dissidências. Todo o direito é
fruto de muita guerra, de muito conflito.
No mundo jurídico difunde-se
outra ideia equivocada (sintetizada por Cícero) de que “inter arma silent
leges” (sob guerras, as leis silenciam). Não haveria nem sequer o poder
político enquanto existem guerras. Em outras palavras, cessadas as guerras,
nasceria o poder político. Ilusão. “A guerra nunca desaparece porque ela
presidiu o nascimento dos Estados, do direito, da paz e das leis. Todas essas
instituições nasceram do sangue e do lodo das batalhas e das rivalidades, que
nunca foram (como imaginavam os filósofos e juristas) batalhas e rivalidades
ideais (sim, reais). A lei não nasce da natureza, como se fosse uma fonte a que
acessavam os primeiros pastores. A lei nasce de conflitos reais: massacres,
conquistas, vitórias que têm suas datas e seus horrorosos heróis; a lei nasce
das cidades incendiadas, das terras devastadas; a lei nasce dos inocentes que
agonizam ao amanhecer” [ou ao anoitecer].[4]
Nem antes nem depois da Primeira
(1914-1918) ou da Segunda Guerra mundial (1939-1945) o humano nunca deixou de
estar envolvido em conflitos mortíferos. Guerra laica, guerra santa, guerra
ostensiva, guerra insidiosa, guerra infinita, guerra preventiva… Adoramos a
guerra (as potenciais vítimas, sobretudo as civis, evidentemente, não pensam
assim) como a mitologia adorava os deuses. Não guerreamos “aos pedaços”, sim,
permanentemente. Em todas as relações de poder (ou melhor: de dominação, como
diria Foucault) está presente a guerra (o litígio, o conflito, a desavença).
Por que a França?
Gilles Lapouge (Estadão15/11/15:
A=19) responde: “A França é detestada pelos homens da morte – tanto
quanto os EUA. As razões? A mais inteligível é o envolvimento de Paris na
coalização contra o EI liderada pelos americanos. No Iraque, e na Síria aviões
Rafale e Mirage franceses bombardeiam posições do grupo extremista. Mas a
memória do ódio vai longe. O EI não perdoa a França por ter assinado, em 1916,
o acordo Sykes-Picot, que desmantelou o Império Otomano e dividiu seus despojos
entre a França, que recebeu o Líbano, e a Inglaterra, que ficou com a Síria.
Enfim, a França cometeu outra vilania. Entre todos os Estados, é aquele que
observa com maior vigilância o secularismo – estatuto que autoriza e protege
todas as religiões sem privilegiar nenhuma delas (…) A França é um dos países
que mais envia aprendizes assassinos à Síria. Lá eles são recebidos, passam por
uma lavagem cerebral e são instruídos a matar”.
Para Obama e seus aliados os
ataques do EI, particularmente os recentes (contra a Rússia, derrubando um
avião, no Líbano e, agora, na França), “vão certamente provocar uma reavaliação
da ameaça e exigirão uma estratégia ainda mais agressiva contra o Estado
Islâmico”. O que era uma guerra regional se tornou global. Mas não se trata de
uma guerra “aos pedaços”. O mundo, desde que é mundo, sempre esteve em guerra.
Os humanos e a guerra formam uma díade inseparável.
Créditos:
Comentários